Dia Nacional da Visibilidade Lésbica é comemorado nesta terça, porém, a invasão em um bar na cidade de SP, nos anos 80, definiu o dia 19 de agosto como Dia do Orgulho Lésbico.
Agosto é considerado o mês da Visibilidade Lésbica e tem duas datas marcantes: nesta terça-feira (29), por exemplo, é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, mas além da Visibilidade, também temos neste mês o Dia do Orgulho Lésbico.
Levante do Ferro’s Bar
Tudo começa em 19 de agosto de 1983, data que foi escolhida em homenagem ao levante do Ferro’s Bar, considerado o Stonewall Brasileiro.
O antigo Ferro’s Bar, localizado na Rua Martinho Prado, na região central da capital, foi um local que funcionou entre os anos de 1961 e 1990. Nos primeiros anos, o bar era frequentado por jornalistas e artistas, mas no fim dos anos 60 começou a virar referência para a comunidade lésbica.
Segundo o Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, o bar era um constante ponto de encontro do Grupo de Ação Lésbico Feminista (Galf), que existiu entre 1981 e 1990. Nele eram organizadas reuniões e, principalmente, feita a distribuição do zine – uma espécie de folhetim – “ChanaComChana”, onde eram veiculados debates, produções artísticas e divulgadas as ações do grupo, como uma forma de fazer contato com possíveis novos integrantes.
O Galf, antes de chamar Galf, fazia parte do Somos, primeira organização LGBTQ+ do Brasil, fundada por Alice Oliveira, hoje com 61 anos.
Em 1983, as ativistas do grupo passaram a ser agredidas verbal e fisicamente pelos proprietários do bar, que queria impedir a venda do folhetim.
Alice era uma frequentadora árdua do Ferro’s.
“Naquela época, Ferro’s era frequentada por 95% de lésbicas, ele vivia do dinheiro de lésbicas. Era uma coisa das pessoas saírem de outros países só para conhecer aquele bar, era normal da nossa rotina fazer tudo no Ferro’s, antes de ir para boates, antes de jantar, cansei de tomar café por lá, então eles lucravam com a gente”.
Segundo Alice, na semana antes da revolta, Rosely Roth, antropóloga e ativista, criadora do “ChanaComChana”, foram até o local vender o folhetim e foram impedidas pelo porteiro do local, que estava a mando dos proprietários.
Rosely articulou um protesto para o dia 19 de agosto, com a presença de movimentos lésbicos, gays, feministas, parlamentares e a imprensa. De acordo com Alice, mais de 100 pessoas foram até o bar e conseguiram furar o bloqueio.
Após entrar no estabelecimento, Rosely discursou em cima de uma mesa do local. A venda do folhetim passou a ser permitida no Ferro’s.
A data ficou marcada como Dia do Orgulho Lésbico e foi reconhecida pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em 2008.
A localização do Ferro’s Bar é considerada um lugar de memória LGBTQ+ na cidade de São Paulo pelo Laboratório Outros, da FAU, que tem o papel de manter viva, através de narrativas, a memória de locais que fisicamente deixaram de existir.
“Quando a gente conversa com pessoas lésbicas, lideranças históricas, e pergunta qual o principal lugar de memória lésbica na cidade, na maior parte das vezes vem o Ferro´s Bar. Foi um dos primeiros lugares que as lésbicas consideravam que era delas, a primeira conquista de uma visibilidade pública, mesmo que fosse em um espaço de consumo, além de ter sido palco de um levante”, afirma Renato Cymbalista, um dos pesquisadores.
“Justamente porque o bar não existe mais que é necessário marcá-lo como lugar de memória. O local passou a se sustentar por narrativas”, completa.
Atualmente, o antigo bar virou um vestiário de funcionários que trabalham em comércios da região.
Pós-Ferro’s
Antes do levante do Ferro’s, Alice conta que as lésbicas brasileiras se reuniam no Encontro Brasileiro de Homossexuais, que surgiu nos anos 80. “Era muito se reunir, a gente se encontrava sempre a parte. Tano que fomos nós que brigamos para que entrasse o nome ‘lésbicas’, pensando na visibilidade, porque antes era só homossexuais, por volta do sétimo encontro conseguimos iniciar uma discussão porque queríamos que o nome fosse ‘Encontro Brasileiro de Lésbicas e Bissexuais’, foi uma luta”.
Alice conta que sempre fez parte do ativismo LGBTQ+ e, depois do acontecimento do Ferro’s, sentiu uma necessidade ainda maior de continuar lutando pela causa. “O levante foi algo que fortaleceu ainda mais o movimento e que não dava para deixar adormecer de nenhuma maneira”.
Ela morou na cidade de São Paulo até 1995, onde por alguns motivos – inclusive por um coração partido, decidiu deixar a capital e foi morar em Fortaleza, no Ceará, onde vive até hoje.
13 anos depois do levante
Poster do 1ºSeminário Nacional de Lésbicas. — Foto: Alice Oliveira/ Arquivo pessoal
Um ano depois, ela esteve em contato com um grupo de mulheres lésbicas do Rio de Janeiro, que organizaram para o dia 29 de agosto, de 1996, o 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale) – atual Senalesbi , quando foi estabelecido o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica.
O seminário nasceu da necessidade de promover encontros entre mulheres lésbicas e ampliar a discussão sobre luta, direitos e vitórias da comunidade.
“Foi emocionante, foi a primeira vez que conseguimos estar, somente entre lésbicas, por cinco dias, discutir todas as nossas demandas. Foram mais de 120 pessoas e, depois disso, começamos a trabalhar com a necessidade de organizar o movimento para fortalecer o grupo em cidades e, dessa forma, ampliar o debate nacionalmente”, afirma Alice.
Ao longo dos anos, os encontros continuaram sendo organizados mesmo com dificuldades de comunicação. “Naquela época não celular, então nos organizávamos com a ajuda de parlamentares, toda vez que precisávamos conversar com outros movimentos, de outros estados, nós enviamos cartas via gabinete de algum parlamentar parceiro, se fosse algo urgente ele liberava uma ligação”.
O último encontro realizado pelo Senalesbi foi em 2021. Atualmente, diversos coletivos e associações do Brasil se unem para realizar os encontros. O próximo está marcado para ocorrer no final do ano, no Recife.
“Ele tem o trabalho de articular, lutar, trazer associações e coletivos para o debate para criar um avanço nacional, para avançar em unidade e trabalhar de forma coletiva, para que não estejamos sozinhas”, afirma Geovanna Xavier, que faz parte do Coletivo Bil, formado por mulheres bissexuais e lésbicas trans e cis – que faz parte da organização do seminário.
O Coletivo Bil foi um dos responsáveis por levar a discussão de incluir mulheres bissexuais no evento.
“Hoje me dá uma alegria imensa, ver que toda a nossa luta, tudo o que fizemos ao longo da vida teve um reconhecimento. Me enche de alegria toda vez que vejo que estamos ocupando espaços, que estamos em lugares que eu jamais, na minha juventude, imaginaria, então o movimento lésbico no Brasil teve vitórias e estamos ampliando o nosso debate para ter ainda mais”, afirma Alice.
fonte: Geledes e G1 / Arte: canva.com